Não me canso de dizer que sou um exemplo prático de que sozinho não chegamos a lugar algum. No meu caso a expressão ganha sentido literal mesmo. Afinal, sem uma mãozinha não saio do lugar.
A dependência, talvez, tenha sido uma das grandes mudanças em minha vida após sofrer um acidente aos 26 anos e perder movimentos do pescoço para baixo. Embora não tenha sido a maior dor, foi a mudança mais impactante e que me exigiu buscar novos referenciais.
Essa transformação abrupta ocorre com muitas pessoas ao adquirem uma deficiência, uma doença degenerativa ou mesmo quando envelhecem e passam a precisar da ajuda de um cuidador, profissão linda, e que embora seja de extrema importância, ainda não tem regulamentação.
Contratado como um profissional doméstico desde sempre, o cuidador passou a ser demitido após a mudança na legislação. A PEC das Domésticas trouxe prejuízos tanto ao contratado, quanto ao contratante. Famílias passaram a ficar órfãs e tiveram de abrir mão do trabalho para cuidar de seus entes. Quando isso não é possível, o abandono passa a fazer parte do mundo dessas pessoas.
Na tentativa de mudar essa realidade, procurei à época o relator Romero Jucá, que foi o relator da PEC das domésticas, para que ele pensasse em um regime diferenciado ao referir-se ao profissional cuidador. Ainda na Câmara, sou autora de quatro projetos de lei nesta temática.
Resumidamente, o primeiro regulamenta a profissão de cuidador porque essa profissão ainda não existe em nosso país. Outro, protocolado na Assistência Social, prevê que essas pessoas com deficiência, que vivem em situação de vulnerabilidade (ou também portadores de doenças graves ou mesmo mães de filhos com deficiência intelectual, que precisam prover todo o sustento de seus filhos) possam ter o direito de um cuidador a ser fornecido e treinado pelo Governo.
Ainda há outro projeto, este protocolado na Previdência, que prevê ao cidadão que é contribuinte, o direito de receber o Auxílio cuidador, benefício que deverá ser proveniente da Previdência. A ideia é que com esse recurso a pessoa possa contratar o serviço de um assistente pessoal, seja de um profissional de fora ou mesmo alguém da família. A grande maioria das pessoas com deficiência em nosso país, mesmo não vivendo em situação de vulnerabilidade, não podem arcar com o custo de um profissional.
Já o quarto projeto, também de minha autoria, é uma Proposta de Emenda Constitucional, que traz aos cuidadores uma aposentadoria especial, semelhantes a de quem tem uma deficiência. Afinal, esses profissionais sofrem um desgaste físico e emocional muito grandes e precisam de cuidados também. O projeto é também um incentivo para que os familiares cuidadores sejam contribuintes e contem futuramente com uma aposentadoria especial.
Tais iniciativas ajudarão não só a melhorar a qualidade de vida de quem precisa de cuidados, como dará mais autonomia para as famílias proverem seu sustento.
Não podemos ainda ignorar a necessidade de uma nação que a cada dia se torna mais idosa e cresce à margem de uma sociedade que cultua o ‘vintage’, mas negligencia o ‘velho’. No Brasil, 72% dos idosos têm limitações para realizar tarefas básicas, como comer e ir ao banheiro. Essa população conta hoje com o somente miserável e precário Sistema Único de Saúde. E se levarmos em consideração o envelhecimento da população com deficiência, o quadro é ainda mais preocupante.
De acordo com uma pesquisa da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo, na última década houve um aumento considerável na expectativa de vida das pessoas com deficiência intelectual. Indivíduos que viviam até os 35, hoje gozam a vida até os seus 60 anos de idade. Embora seja um dado passível de celebrar, temos de nos ater a qualidade de vida destas pessoas, já que o fato de viver mais não necessariamente significa ‘viver melhor’.
Além de cuidados que qualquer pessoa precisa ao chegar a uma faixa etária avançada, ela necessita de cuidados redobrados, uma vez que está mais suscetível a problemas como obesidade, hipertensão, doenças de visão, audição e da próstata. A atuação de um cuidador nestes casos é extremamente necessária. Afinal, os avanços da tecnologia e da medicina permitem hoje que pessoas com deficiência e doenças raras, que antes tinham a expectativa de vida muita curta, possam envelhecer. E sem os pais e familiares presentes elas ficarão à mercê de qualquer tipo de cuidado.
Falar deste tema me faz ainda lembrar do meu próprio passado, pois antes de me tornar uma pessoa que depende de tal serviço, eu já fui cuidadora de um idoso e de uma moça que, assim como eu, era tetraplégica. Na época, sem imaginar que um dia estaria nas mesmas condições, tentei levar a ela um pouco mais de saúde, incorporando movimentos a sua vida.
Já o Luigi era um senhor italiano que vivia sozinho. Contratada por sua filha, passei a lhe fazer companhia todas as tardes. No começo, minha presença não era bem vinda. Luigi era quieto, sozinho e meio ranzinza. Reclamava até da minha comida, quando tentava mudar seu precário cardápio.
Nossa relação só passou a ganhar novos recortes depois que de muitas tentativas para agradá-lo, eu passei a ler em voz alta as notícias do dia. Enquanto fazia a leitura do jornal, Luigi corrigia meu italiano. Na verdade, tudo que Luigi precisava era de se sentir útil e querido por alguém. Em pouco tempo, minha rotina com aquele senhor tornou-se uma parte deliciosa e leve da minha vida. Acabamos construindo uma relação de muita cumplicidade, bem parecida com a que tenho hoje com minhas assistentes pessoais.
A atuação de um cuidador, no entanto, está muito além da necessidade de cuidados. Tem a ver com resgate de dignidade e criação de possibilidades na vida de milhares de pessoas que podem ser produtivas e contribuir para o país.
Costumo muito dizer que a minha ideia de felicidade está intimamente ligada à capacidade de produzir e realizar. Com uma política de cuidados em nosso país, ampliaríamos muito mais nossa mão de obra trabalhadora, deixando de onerar a saúde pública em vários setores e proporcionando a muita gente qualidade de vida e, acima de tudo, o direito à felicidade, devolutiva básica que um gestor público deveria esperar como resultado de seu trabalho.
Crédito da foto de capa: Alexssandro Loyola
Mara Gabrilli, é deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Publicitária e psicóloga, também foi vereadora na Câmara Municipal e Secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo.