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A menina que ensinou os pais a serem mais humanos e enxergarem o mundo de outra forma

Conheça a história da família de Joinville (SC) que lutou pelo diagnóstico e pela qualidade de vida da filha

Por Gláucia Padilha

O casal Elisangela Cristina Venturini e Alexandre Bajo juntos com a pequena Gabi. Crédito: arquivo pessoal

Gabi sempre foi um bebê muito amado e desejado por seus pais, a advogada Elisângela Cristina Venturini, 38 anos, e o cirurgião dentista Alexandre Bajo, moradores de Joinville, em Santa Catarina (SC). Primeiro filho, a gravidez foi planejada e seguiu todas as etapas para realizar o sonho da mãe de primeira viagem: enxoval, fotos, decoração do quarto, lembrancinhas de nascimento. E, claro, o pré-natal, de fundamental importância para o nascimento de uma criança com saúde.

Nada podia dar errado, afinal a gravidez seguia seu curso normal. Mas, de repente, do nada, Elisangela foi surpreendida por uma notícia que por pouco não lhe “tirou o chão”:  teria de antecipar o parto da pequena Gabi, já que um ultrassom detectou restrição de crescimento intra-uterino (RCIU), condição que normalmente está relacionada a um risco maior de mortalidade perinatal, atraso no desenvolvimento cognitivo e doenças crônicas na vida adulta (hipertensão, problemas cardiovasculares e diabetes, por exemplo).

E assim, no dia 29 de setembro de 2011, nasceu Gabi, prematura, de 34 semanas, com 1, 810 Kg. O parto ocorreu da melhor forma possível, mas Gabi teve de permanecer no hospital, na incubadora, para alcançar o peso de dois quilos para, só então, ter alta. Até então, tudo transcorria dentro da normalidade. Entretanto, apesar da felicidade de levar a filha para casa, Elisangela não esperava o que estava por vir. A bebê chorava muito, ficava irritada, não sugava o peito e apresentava uns sustinhos que, geralmente, não se observava em outras crianças.

Sem saber o que fazer, os pais procuraram o atendimento médico, o primeiro de uma série, em dois anos de peregrinação por consultórios, exames, viagens, numa busca incansável por respostas sobre o possível problema da pequena Gabi, que completa cinco anos de idade em setembro. “A nossa maior esperança naquele momento era descobrir o que a Gabi tinha e iniciar o tratamento”, conta Elisangela.

O que eles não imaginavam é que a esperança daria lugar a uma notícia devastadora após mais de dois anos depois da primeira consulta do bebê com inúmeros exames e laudos inconclusivos. A espera terminava, mas dava início a uma nova etapa. Gabi havia sido diagnosticada com Deficiência Combinada da Fosforilação Oxidativa 13, uma raríssima alteração genética envolvendo a função da mitocôndria e a energia da célula.

“Quando descobrimos ficamos sem reação. A nossa longa caminhada até então era para descobrir e poder tratar. Aí você descobre que a doença da sua filha não tem tratamento. Foi um choque. Fizemos um último exame com a esperança de começar uma vida diferente e, ao invés do alívio, o resultado nos trouxe mais dúvidas e insegurança, pois não sabemos como ela vai acordar amanhã”, diz a mãe.

Família reunida: Elisangela, o marido e a pequena Gabi. Crédito: arquivo pessoal
Doenças mitocondriais

O cérebro, o coração e os músculos são os órgãos mais afetados quando há uma doença genética que interfere no funcionamento da mitocôndria. “As doenças mitocondriais são bastante frequentes. Entretanto, a alteração genética envolvendo o gene PNPT1 é muito rara e há poucos casos relatados”, explica Carolina Fischinger Moura de Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) e médica Geneticista, PhD, do Serviço de Genética do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Segundo Elisangela, ela foi informada que apenas três casos, incluindo o de Gabi, foram registrados em todo o mundo.

Entre as características de alteração de gene, destacam-se: dificuldades de fala, para segurar objetos e em fixar os olhos em determinados pontos e não consegue ganhar peso devido à dificuldade de absorção dos nutrientes. Os sinais batiam com as características apresentadas por Gabi: dificuldade de segurar as coisas, de enxergar (baixa visão, nistagmo – oscilações rítmicas, repetidas e involuntárias de um ou ambos os olhos – e estrabismo), além de hipotonia (fraqueza muscular) e distonia (contrações e espasmos voluntários), o que a impossibilita de firmar o pescoço e andar. Hoje, com as sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, estimulação visual e fonoaudiologia, Gabi já apresenta melhoras cognitivas, mas o atraso no desenvolvimento motor e intelectual é severo e,  por conta disso,  ela ainda não fala e não anda.

Longa caminhada

A caminhada dos pais de Gabi começou no primeiro dia de vida da menina com a chegada da família em casa. “Ela estava sempre irritada. Chorava muito. Ora tinha sono e ora não tinha. Não conseguia sugar o peito para mamar. Tinha sustos. E nós não sabíamos o que fazer”. Ainda na UTI, Elisangela conta que percebeu que o bebê era molinho, mas achou que era normal por se tratar de um recém-nascido.

Sem saber como lidar com a situação da filha, que não apresentava melhora, a solução foi levar Gabi ao pediatra. Elisangela e o marido ouviram do médico que os sustos, chamados de Reflexo de Moro, eram normais em bebês de até três meses. O problema é que, à medida que o tempo passava, todas as alterações atribuídas aos bebês prematuros, continuavam ainda mais evidentes em Gabi.

Com cinco meses, ela não havia ainda alcançado alguns marcos importantes do desenvolvimento infantil.  O pediatra, então, orientou Elisangela a procurar fisioterapia e foi acalmada pelo médico que dizia ser o quadro dela normal por ela ser prematura. A fisioterapeuta logo percebeu que a Gabi tinha um problema neurológico e atraso no desenvolvimento. Elisangela marcou então um neuropediatra. Infelizmente, apenas pelos exames clínicos, o médico concluiu que a pequena Gabi tinha síndrome de West, forma grave de epilepsia em crianças, que pode levar à morte se não tratada.

“Ele suspeitou por causa dos movimentos que ela vinha apresentando (sustinhos) e pelas suas características físicas como a hipotonia severa e atraso no desenvolvimento de uma forma geral”, conta Elisangela. Dali em diante, foram mais exames até que os médicos descartaram West. O próximo passo foi a procura por um especialista em erros inatos do metabolismo, que também descartou essa possibilidade.

Elisangela não sossegou. Procurou uma prima, médica do HC de Ribeirão Preto (SP),  que lhe indicou um médico geneticista.  Já na primeira consulta, o especialista observou, pelas características físicas de Gabi, que o problema poderia ser deficiência de neurotransmissor. Ainda no HC de Ribeirão, a menina realizou vários exames e, um deles, o de Pré-Natal em Papel Filtro, foi enviado à Suíça. Com resultado inconclusivo, Gabi seria submetida a outro exame para extrair líquor da medula com o objetivo de aprofundar um pouco mais as pesquisas.

Nesse meio tempo, de volta a Joinville, Elisangela teve de refazer alguns exames de rotina, dentre eles a ressonância magnética, que apontou uma lesão no cérebro que poderia indicar doença mitocondrial e que, de forma secundária, poderia ter desenvolvido o distúrbio de neurotransmissor.

Elisangela foi aconselhada a procurar uma neurologista pediátrica de Curitiba (PR), Mara Lucia Schmitz Ferreira Santos, que permanece até hoje cuidando de Gabi. Parece que a longa caminhada da família estava chegando ao fim. Dessa vez, a médica sugeriu o sequenciamento do exoma, exame que permite a identificação da causa de doenças genéticas de origem desconhecida ou causadas por um entre centenas de genes, como deficiência intelectual, malformações e distúrbios da diferenciação sexual.

O resultado do exame, realizado em outubro de 2013, saiu dois meses depois: deficiência de PNPT1, alteração genética muito rara e com poucos casos relatados. “Essa alteração genética pode ocorrer ao acaso ou ser herdada pelos pais. Algumas também podem ser herdadas pela DNA mitocondrial da mãe. A deficiência de PNPT1, normalmente, é herdada por alterações genéticas de seus pais, mesmo que eles não tenham manifestado a doença, pois possuem somente um gene alterado. A doença só age a partir de dois genes alterados”, explica a médica Carolina.

É o caso da Gabi, que herdou o gene tanto do pai quanto da mãe. Segundo Elisangela, o primeiro caso catalogado no mundo, registrado depois de um ano do nascimento da Gabi, foi o de dois irmãos, filhos de pais primos em primeiro grau.

“Ao longo desses cinco anos, por diversas vezes, vi meu mundo e meus sonhos desabarem, me revoltei, tive muito medo, senti dor e culpa, lutei, tive fé, mas também perdi a fé, reordenei alguns valores e conceitos que até então eram imutáveis pra mim, cresci e me tornei um ser humano melhor para o mundo, mais tolerante com o próximo, mais atento a detalhes que antes já tinham se tornado imperceptíveis na minha vida”, confessa Elisangela.

O que é a vida normal com um filho especial?

“Gabi é como se fosse um bebê de cinco meses. Não anda. Tem hipotonia severa. Sua compreensão das coisas é muito limitada e sua alimentação é através de uma sonda no estômago. Mas não sou infeliz. Decidi viver o hoje e aproveitar tudo o que posso junto dela, pois cada dia é uma história diferente. Passeio com ela, vou a barzinhos, festas, compartilho com ela todos os momentos da minha vida. Tenho uma amiga de infância, a Maisa, que abriu mão de praticamente tudo para cuidar da Gabi desde pequena. E tudo o que sou hoje, a tranqüilidade para levar uma vida normal, poder trabalhar, tudo é graças à Maisa. Ela está sempre junto em todas as situações. Sou apaixonada por minha filha, pelo que ela me ensinou. Ela me fez ser uma mãe bem diferente do que eu seria se fosse um filho normal. Ela não beija, não abraça. Nunca ganhei um abraço, um beijo dela. Esse tipo de coisa não vou ser hipócrita de dizer que não sinto inveja de outras mães, mas não é um abraço ou um beijo que vai me completar como mãe. Ela me completa de outras formas. É o todo da Gabi. Qualquer manifestação dela, embora seja pequena, é que me dá forças. Um simples gesto como o de levantar a mão, por exemplo, já me deixa feliz. Quando ela era pequena e estava brava, chorando, eu dizia pra ela confiar na mamãe e no papai que nós estaríamos sempre com ela. Depois desse dia parece que a gente se fala apenas pelo olhar. Ela vive com o sorriso aberto. Gosta de uma bagunça. Ri que se mata das brincadeiras que eu faço com ela. Ela traz alegria para a gente. E também me dá forças quando vejo que a história da Gabi ajuda muitas pessoas. Recebo mensagens no blog (http://meuanjogabriela.com.br/) de pessoas dos EUA, África, Austrália, de vários países.”

Entenda a doença

O que é a doença

Deficiência Combinada da Fosforilação Oxidativa 13 é uma raríssima alteração genética envolvendo a função da mitocôndria e a energia da célula. O cérebro,  coração e os músculos são os órgãos mais afetados quando há uma doença genética que interfere no funcionamento da mitocôndria. As doenças mitocondriais são em seu conjunto frequentes, mas alteração genética envolvendo o gene PNPT1 é muito rara e há poucos casos relatados.

Causa

A alteração genética pode ocorrer ao acaso ou ser herdada pelos pais. Algumas podem ser herdadas pela DNA mitocondrial da mãe. A deficiência de PNPT1 normalmente é herdada por alterações genéticas de seus pais que são portadores da alteração, mas não manifestam a doença, pois possuem somente um gene alterado. Para manifestar a doença são necessários dois genes alterados.

Sintomas

Falta de energia, hipotonia (fraqueza muscular), atraso no desenvolvimento psicomotor, e,  em alguns casos, pode provocar convulsões e alterações nos exames de imagem cerebral como a ressonância.

Diagnóstico

O diagnóstico sempre é importante para a família e para o manejo clínico do paciente afetado por doença mitocondrial.

Tratamento

Apesar de haver alguns estudos em andamento buscando alternativas de tratamento para as doenças mitocondriais, não há cura e não há tratamento curativo ou específico. O paciente, além dos pais após o aconselhamento genético, deve ser acompanhado por um geneticista clinico.

Prevalência

A doença atinge qualquer sexo. Geralmente, as manifestações ocorrem na infância, com idades variáveis, pois depende da gravidade da alteração genética encontrada. Há uma grande variabilidade entre os casos afetados.

A quem recorrer

Não há centros específicos no Brasil. O paciente deve ser acompanhado por neuropediatra, geneticista especialista em doenças metabólicas hereditárias, e múltiplos profissionais como fisioterapeuta, fonoterapeuta, nutricionista etc.

Estatísticas

Estima-se que a frequencia das doenças mitocondriais como um todo no mundo é de 1:8000 nascidos vivos. Contudo para a alteração genética encontrada não há dados específicos da sua frequencia, mas é provável que seja ultra rara (menor que 1:300, 000).

Fonte: Carolina Fischinger Moura de Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) e médica Geneticista, PhD, do Serviço de Genética do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA).

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