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A experiência de ter um filho com doença rara

Nesta semana, a BBC publicou uma reportagem com a história de pais que resolveram compartilhar a experiência de ter um filho diagnosticado com uma doença rara. O portal Muitos Somos Raros reproduz a matéria, na íntegra, com os depoimento de familiares que contam, em detalhes, o desafio de conviver no dia a dia ao lado de um paciente acometido por uma doença rara.

Rafael Barifouse

Da BBC Brasil em São Paulo

Publicado em 11 de abril de 2016

As experiências pelas quais passam pais e mães ao ter um filho diagnosticado com uma condição ou doença rara podem parecer bastante semelhantes a princípio. Em muitos casos, as chances de ser portador de uma síndrome ou anomalia é de uma em 5 mil, ou 15 mil e até 50 mil. Mas, ter uma criança que confirma essa (im)probabilidade estatística é muitas vezes um golpe difícil de digerir e pode significar ter uma série de expectativas frustradas.

No entanto, conversar com pais e mães que aceitaram compartilhar com a BBC Brasil um pouco do que viveram e ainda vivem revela uma miríade mais complexa de sensações e reações, que desafiam o senso comum.

O diagnóstico é de fato um momento impactante, capaz de despertar tristeza, medo, revolta ou uma mistura de todos estes sentimentos. Mas pode gerar um inesperado alívio em quem se pergunta: “O que há de errado com meu filho?”.

Esse momento também costuma trazer consigo a perspectiva de uma dura rotina, marcada por internações, exames, tratamentos, cirurgias e mais exames, e de variadas doses de abnegação para amenizar os impactos dessa condição sobre a criança.

Ao mesmo tempo, descortina-se um novo cotidiano em que pequenas conquistas tornam-se grandes vitórias, de momentos corriqueiramente especiais, da descoberta de uma força interior e de uma nova forma de enxergar o mundo. Um processo que pode, inclusive, dar um novo significado à vida.

Ouvir estes depoimentos mostra por fim que tantas nuances fazem destas experiências, a princípio tão parecidas, histórias absolutamente únicas. _________________________________________________________________

‘Foi como ganhar na loteria ao contrário’

Há um ano, Priscilla Fiorin deu à luz Catarina, após uma gestão bastante tranquila. Mas, por conta de uma atresia do esôfago –uma má formação congênita do órgãoo primeiro ano de vida na menina se provaria desafiador.

“Foi uma gravidez de sonho. Mas meu marido logo percebeu que algo não estava legal com Catarina. Saía muita saliva por seu nariz e, algumas horas após nascer, ela voltou a ficar azulada. A princípio, acharam que era água no pulmão, algo simples, e que ela seria ia entrar e sair rápido da UTI. Ficou um mês.

Foi horrível ouvir que ela havia nascido sem uma parte do esôfago. Pensamos: “Não vai conseguir comer. Vai morrer.” A última coisa que você quer ao ter um bebê é submetê-lo a uma cirurgia.

Correu tudo bem, mas, após uma semana, a saliva voltou a vazar pela sonda colocada para alimentá-la. Uma infecção muito séria estava evoluindo. Os médicos decidiram operá-la novamente.

No dia, meu marido levou a certidão de nascimento para o caso de ser necessário fazer uma de óbito. Mas Catarina reagiu bem e pudemos levá-la para casa. Foi difícil encontrar informação sobre o que ela tinha e, se achavamos, era muito técnica.

Num diagnóstico de síndrome de Down, por exemplo, é simples achar informações e saber que a criança pode se desenvolver e ter uma vida normal.

Se foi complicado para mim, alguém com boa instrução, que sabe como ir atrás de informação e que estava no melhor hospital do país, imagina como é para alguém mais simples? Ninguém me explicava, por exemplo, se era algo genético. Com esforço, descobri ser uma condição aleatória que ocorre em um a cada 4 mil nascimentos. É como ganhar na loteria ao contrário.

Fizemos as adaptações para um bebê com uma condição especial. Nossa casa virou um mini-hospital. Entramos em contato com outras famílias que passavam pelo mesmo. Aos poucos, deixou de ser um monstro de sete cabeças. Hoje, é um detalhe. Com um ano, ela fez uma cirurgia corretiva. Tem cicatrizes que levará para a vida, mas ficará bem.

Agora, dedico parte do meu tempo a ajudar outras famílias nesta situação e vejo que a condição da minha filha me deu a oportunidade de fazer algo pelos outros. Achei minha causa.” _________________________________________________________________

‘Temo pelo futuro da minha filha’

Cilene Bonfim nunca havia ouvido falar da Sídrome de Smith Magenis, caracterizada por uma anormalidade no cromossomo 17 que afeta uma em cada 25 mil pessoas, até sua filha Victoria ser diagnosticada com esta condição.

“Desde que Victoria nasceu, percebi que era diferente. Não se movia muito, algo incomum para uma criança, nem se desenvolvia em ritmo normal. Não sabíamos qual era o problema, pois o pré-natal e os testes após o parto não indicaram um problema. Do nascimento até os oito meses, quando nos mudamos para a Noruega, consultamos quatro neuropediatras. Nenhum chegou a um diagnóstico.

Seguimos investigando na Europa. Foi só aí que soubemos o que havia de errado. Um teste genético indicou que ela tem Síndrome de Smith Magenis, algo muito raro, com dois ou três casos em toda a Noruega. Foram quatro anos de angústia em busca desta reposta. Senti revolta. É muito injusto que isso tenha acontecido com a gente.

Victoria apresenta vários sintomas devastadores: se bate, se morde e arranca seus fios de cabelo durante as crises, que podem ser desencadeadas por um simples aceno de mão não correspondido na rua. Faz um barulho com a boca constantemente e apresenta outros comportamentos obsessivos, como repetir uma frase um milhão de vezes.

Por ter deficiência de melatonina, ela não sabe a diferença entre o dia e a noite. Pode acordar de madrugada, achar que já é de manhã e querer dançar. Por disso, não durmo direito desde que ela nasceu. Hoje, aos 14 anos, Victoria anda e fala pouco. É como um bebê, precisa de ajuda para tudo. Ao menos não tem problemas no coração, uma característica da doença.

É muito difícil ver crianças da mesma idade dela, porque elas se desenvolverão, e Victoria continuará do mesmo jeito. Aqui na Noruega ela recebe um apoio que seria um sonho no Brasil. Tem uma professora e dois assistentes dedicados a ela na escola, faz terapia gratuitamente. Mas o tratamento nunca funcionou. Não vejo resultados.

Apesar de ser uma rotina pesada para mim, não vou interná-la em uma instituição enquanto tiver forças. Estou poupando-a de um futuro inevitável, pois ela não tem irmãos, e seus parentes estão quase todos no Brasil.

No começo, pensava que seria só um probleminha e que tudo daria certo. Não tenho mais essa esperança. É difícil ver um futuro. Como ela vai conseguir sobreviver sozinha quando eu me for?” _________________________________________________________________

‘O diagnóstico foi um alívio’

Aline Borguezan quase não achou informações sobre a Síndrome de Koolen-de Vries, uma anomalia nos cromossomos da qual seu filho Henrique é portador. Hoje, busca apoio em um grupo no Facebook formado por pais de todo o mundo.

“Henrique é o quinto diagnóstico de Síndrome de Koolen-de Vries no Brasil. No mundo, há pouquíssimos casos. É tão desconhecida que os médicos que a identificaram ainda estão catalogando dados. Eles dizem, no entanto, que é subdiagnosticada, pois é preciso fazer um exame complexo e caro, difícil de encontrar. Levamos dois anos. Vivemos uma montanha-russa de emoções até então, e, quando ele foi finalmente diagnosticado, foi um alívio.

Henrique enfrentou problemas desde cedo. Nasceu com pé torto e a moleira fechada. Teve dificuldade de mamar. Não conseguia engolir, porque a laringe era menos rígida do que deveria. Passou por cirurgias e fez fisioterapia para seu atraso de desenvolvimento e falta de tônus muscular. Chegamos a fazer um exame genético que não identificou nenhum problema.

Passamos por cinco dos melhores neuropediatras de São Paulo e nada. É mesmo difícil diagnosticar um bebê de colo. Costuma-se esperar para ver se a criança segue apresentando um atraso. Como foi o caso, fizemos um exame mais aprofundado com o geneticista que nos deu o diagnóstico.

Quando eu e meu marido pesquisamos sobre o assunto, não encontramos nada. Só achei no Facebook um grupo de pais com filhos na mesma condição. Ficamos aliviados por saber que não se trata de algo hereditário. É uma mutação que ocorre quando o embrião se forma, um jogo de sorte ou azar.

Se já tivesse o diagnóstico quando meu filho começou a ter convulsões com pouco mais de 1 ano, teria sido diferente. Hoje, a situação está controlada com remédios, mas ele ainda tem episódios. Seu lado cognitivo foi bastante afetado também. Não atende a comandos nem fala. A comunicação é bastante difícil, mesmo por meio de gestos.

Pelo Henrique, deixei de trabalhar. Desde que ele nasceu, sabia que teria ao menos um ano de médicos, exames e cirurgias pela frente. É frustrante ficar em casa. Também sinto falta de uma rotina, de sair com amigos. Ao mesmo tempo, sei que não dá para ser diferente. Henrique ainda precisa de mim.

Pelo grupo, eu e meu marido trocamos experiências com outros pais. Foi um consolo saber que há pessoas de 35 anos com a síndrome. Têm falta de coordenação, mas foram alfabetizadas. Necessitam de apoio, mas conseguem viver bem. Henrique não andava. Agora, começou. Também acho que ele pode falar, porque há crianças que conseguem.

Por isso, digo que o diagnóstico nos deu um horizonte. Não que façamos grandes planos, mas agora temos uma perspectiva do que esperar. Muitos pais nesta situação sequer têm isso.” _________________________________________________________________

‘Não vamos desistir’

Maria Carmelita da Silva busca há oito anos confirmar o mal que aflige seu filho Vinícius. Ela espera ter em breve confirmação de que se trata da Síndrome de MELAS, uma doença neurodegenerativa rara de origem genética.

“Vinícius foi um menino saudável e sapeca até os 8 anos, quando começou a ter dores de cabeça. Um dia, em meio a uma crise, dei um remédio e o coloquei para dormir. Quando acordou, seu rosto estava deformado. Ele havia tido um AVC. Vinícius ficou três meses internado e fez um monte de exames. Mas, por seis anos, ninguém descobria o que ele tinha.

Em uma viagem para Maceió, Vinícius adoeceu. Ficou inchado e não conseguia andar direito ou dormir. Minha cunhada é neuropediatra e, com ajuda de um médico de Ribeirão Preto, chegou à conclusão de que ele pode ter Síndrome de MELAS, mas um teste genético deu negativo. Segundo minha cunhada, o diagnóstico só pode ser feito com uma biópsia de músculo, então, a suspeita continua.

Esta é uma condição rara passada por meio do DNA da mãe. Já senti muita culpa por ter passado isso para o Vinícius. Mas meu primeiro filho não tem isso, nem qualquer outra pessoa da minha família até onde saiba.

No ano passado, como Vinícius estava com muitos nódulos, ele passou por um transplante de medula. Tudo correu bem até ele sofrer um novo AVC em dezembro passado. Nenhum médico me dizia o por quê. Esse segundo deixou sequelas em sua visão. Mas ele é um menino muito forte. Não fica para baixo, gosta de dançar e cantar. Há dias em que chora muito e diz preferir morrer, porque ‘isso não é vida’. Digo a ele que há pessoas em situações piores.

Fico muito preocupada e angustiada, sem saber o que fazer, correndo de um médico para outro. Faz oito anos que buscamos o diagnóstico. Está demorando demais, mas dou graças a Deus, porque parece que finalmente agora vai. Faremos um novo exame para confirmar a suspeita de Síndrome de MELAS, mas temos certeza de que é, pois ele tem todos os sintomas.

Tenho de seguir em frente, de cabeça erguida, e lutar até dar certo. Já chegamos até aqui e não vamos desistir.”

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‘Fiquei de luto’

Luiz Ricardo Cavalheiro levou três anos para confirmar que seu filho Pedro Vinícius, hoje com 3 anos e meio, é portador da Síncrome de Wolf-Hirchhorn, causada pela ausência de parte do cromossomo 4 e que afeta uma em cada 50 mil pessoas.

“Não sou uma pessoa ignorante, mas nunca tinha ouvido falar da Síndrome de Wolf-Hirschhorn quando recebi o diagnóstico do Pedro Vinícius. Corri para a internet para saber mais. Foi quando o chão se abriu. Meu mundo caiu. Descobrir que meu filho não andaria nem falaria nem saberia o que acontece ao seu redor despertou em mim um luto. Fiquei pensando em tudo de ruim que poderia acontecer, inclusive ele morrer, porque a expectativa de vida pode ser muito reduzida, de só dois anos.

O alerta veio na gravidez. A barriga da minha mulher ficou bem pequena. Confirmamos que havia um problema no ultrassom no sétimo mês. Ele nasceu prematuro pouco depois, algo comum nestes casos. Depois de 40 dias na UTI e outros quatro no berçário, pudemos levá-lo para casa e o acompanhamos com cuidado.

Ele não se desenvolvia normalmente. Demorou para sustentar o pescoço e sentar sem apoio. Suspeitávamos que ele era autista por sua desconexão com o mundo, mas o neurologista descartou. Só consegui o diagnóstico após três anos, quando fizemos um exame genético mais complexo. De qualquer maneira, já havíamos começado com terapias desde muito cedo para desenvolver seu lado motor.

Hoje, ele está bem. Tem um intelecto limitado, não anda sem apoio e ainda não fala, mas pode vir a falar. Conheci outros casos em que isso aconteceu. Mas ainda assim é angustiante, porque não tem como não compará-lo com crianças da mesma idade.

Eu e minha minha mulher pensávamos em ter um filho só, mas, agora, queremos mais um. Pedro Vinícius interage muito com crianças, e seria bom ele ter um irmão para lhe fazer companhia e cuidar dele caso alguma coisa aconteça com a gente. Antes, vamos fazer um exame para descartar a possibilidade de termos transmitido esta característica para ele, o que representa a minoria dos casos.

Mesmo se tivermos transmitido, não sentiria culpa, pois ele é muito feliz e amado. Mas, se for o caso, descartaremos o projeto de um segundo filho. Seria egoísta arriscar a transmissão. Aí, sim, me sentiria culpado.”

Fonte : http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160405_pais_filhos_doencas_raras_relatos_rb

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